Coluna Literária 5ª edição – Temos muito a dizer sempre
Foto: Arte/FMCBH

Coluna Literária 5ª edição – Temos muito a dizer sempre

Visto que a finalidade principal da Coluna Literária, guiada pela bibliodiversidade, é incentivar a leitura de diferentes gêneros textuais, assim como promover a valorização da literatura, dos livros e das bibliotecas, esta edição dedica-se a divulgar a série “Caderno de Leituras”, da “Edições Chão de Feira”. A iniciativa*, que este ano completa 10 anos de existência, tem como editoras Luísa Rabello e Maria Carolina Fenati.

Em um cenário com pouca atuação das mulheres no mercado editorial brasileiro, a divulgação das publicações “Chão de Feira” torna-se ainda mais relevante. A série “Caderno de Leituras” publica breves ensaios inéditos ou de rara circulação e podem ser baixados gratuitamente no site da editora. Ao todo são 130 cadernos, com diferentes temáticas e autorias. A editora também comercializa livros e realiza oficinas de formação cultural. 

Segundo o dicionário Houaiss, o ensaio é “uma prosa livre que versa sobre tema específico, sem esgotá-lo...”. Penso que a leitura e escrita desse gênero textual poderia ser mais incentivada, pois possibilita a expressão de nossas opiniões, sentimentos e lembranças, sem compromisso com referenciais teóricos, ainda que eles possam ser empregados.

Não por acaso, a 5ª edição da Coluna Literária foi organizada por quatro mulheres que aceitaram o desafio de comentar os ensaios “Tornarse existencia exuberante”, da escritora galego-catalã Brigitte Vasallo; “O jogo do dicionário”, da editora brasileira Maria Carolina Fenati; e “Minha mãe vive aqui”, da escritora mexicana Isabel Zapata. Escolhemos os textos dessas três escritoras para celebrar a permanente conquista que as mulheres têm alcançado na produção escrita. Acreditamos ainda que a diversidade de vozes desestabiliza a homogeneização dos discursos que circulam nas sociedades dominadas pelo patriarcado. Esperamos que gostem das resenhas, leiam os textos na íntrega no site da editora e conheçam o restante do valioso acervo da “Edições Chão de Feira”.


Daniela Figueiredo

 

Sobre brincar com as palavras e seus sentidos

 
O Jogo do Dicionário Maria Carolina Fenatti, autora do ensaio “O jogo do dicionário”, é também a coordenadora e editora da coleção Caderno de Leituras. No número 100 da coleção, ela nos conta como nasceu essa iniciativa e em que contexto isso se deu. Recomendo a leitura que me encantou. 

O Caderno de Leituras número 26 nos leva por um passeio por textos e autores que, diante do difícil exercício da escrita, jogam com as palavras para que as mesmas voltem a fazer sentido ou passem a ter sentidos diferentes, levando a escrita a trilhar caminhos diversos e adquirir novos significados. O ensaio nos permite vislumbrar o jogo com as palavras exercido e relatado por Herberto Helder – escritor português; Franz Kafka – talvez o mais famoso entre os citados; Imre Kertész – Nobel de Literatura húngaro; e, principalmente, da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol, conhecida pela escrita carregada de ruptura, o texto tortuoso, não linear.

Em todos os autores citados, Carolina Fenati indica obras em que esse jogo com as palavras é descrito, descoberto, exposto. O dicionário, que tradicionalmente nos remete à ideia da ordem, da conformidade, pode ser surpreendente e nos levar a caminhos e relações nunca antes imaginadas. Mostra também que essa brincadeira com as palavras, tão natural às crianças, pode ser resgatada ou reaprendida para dar mais sentido tanto à escrita, quanto à relação com a vida.

Ericka Martin

 

Para baixar e ler o ensaio de Maria Carolina Fenati acesse o site

 

A mulher defeito, a mulher defeituosa

Tornar se existencia exuberanteO feito de Brigitte Vasallo de escrever “Tornarse Existencia Exuberante” com uma grafia muito pessoal, muito própria, levou-me ao feito de ler o ensaio sem a tradução para o português. Não que a tradução não exista: está lá, no caderno 119, após o texto original, e foi feita por Fábio Aristimunho Vargas. Mas caminhei sem a tradução do homem. De feito em feito, a mulher constrói seu caminho e desconstrói a pecha de ser defeito. Mas é preciso outra coisa ainda para não ser (e ser) defeituosa.
 
O defeito de ser mulher e o defeito de ser uma mulher defeituosa, escreve Vasallo, recaem sobre ela, a “marimacho”. Mas não se nasce marimacho, torna-se, ela diz, a la Beauvoir. Nunca estudei galego, não falo galego, mas leio e li, descobri, pelo menos, esse galego de Vasallo. Aceitei seu convite de retorno à língua como experiência.

De feito em feito, defeito feito, desfaço e faço. Fiz: experimentar a língua nesse ensaio. Faça também. Se a experiência queer soar distante, regresse à experiência bastarda. A bastardia de quem sai do campo para a cidade; de quem tem “modos de vida inconvenientes”; de quem se reconhece outra enquanto te insistem uma; de quem tem corpos “inadequados”; de quem desafia e reinventa modos de se relacionar, de amar, de compartilhar; de quem ressignifica o insulto; de quem ressignifica a miséria.

Uma experiência queer, uma experiência bastarda, uma experiência humana. A língua como experiência, a escrita como fala, como devir. A leitura em que a grafia “inadequada” do que se lê lhe ofereça regresso ao que lhe é mais próprio e lhe ofereça uma reconciliação com a sua “inadequação”. E mais: “un coñecemento de pertenza” e “unha existencia exuberante”.  


Érica Lima

Para baixar e ler o ensaio de Brigitte Vasallo acesse o site

 

Dos livros que herdamos 


Minha mãe vive aqui O ensaio “Minha mãe vive aqui”, da escritora mexicana Isabel Zapata, traduzido por Gabriel Bueno Costa, está no Caderno de Leituras 110 e, originalmente, foi publicado como “Mi madre vive aquí”, no livro “Alberca Vacíai”, em 2019. Num primeiro momento, a autora nos defronta com o peso das coisas que herdamos, com os sentidos da memória, com as escolhas do que lembrar e esquecer, daquilo para se guardar ou descartar. E a partir daí, questiona  como podem alguns objetos dar sobrevida às pessoas. Então, a escrita de Isabel passa a nos revelar, pelos livros herdados de sua mãe, percursos de leituras que sublinharam dúvidas, reflexões, insights, elos com outros livros e autores, deixando assim rastros e diálogos para futuros leitores. 

Como filha e herdeira de uma biblioteca a ser reorganizada, Isabel também aponta o lugar e a dispersão desses livros em espaços físicos e afetivos. A guarda empilhada ou cronologicamente disposta ou simplesmente espalhada faz com que os objetos herdados correspondam a formas distintas de lidar com as próprias recordações. 

O texto nos revela as possibilidades de encontros pela memória; não simplesmente pelos objetos – nesse caso, os livros –, mas a partir de como esses livros foram fruídos por sua mãe.  E a mãe leitora se revela para a autora. 

Ao ordenar a biblioteca e explorar livros e coleções de sua mãe, a autora realiza um processo particular e íntimo que identifica como uma verdadeira cremação pela descoberta de seu corpo de leituras. Esse corpo de leituras tem em si sublinhadas passagens e muitas notas que criam, às margens das páginas, verdadeiros refúgios de memória – tal como tatuagens. 

Isabel Zapata reconhece a sua mãe leitora, interpela-se sobre algumas de suas notas, busca seus humores, pergunta-se o porquê de dobraduras e reescreve suas frases soltas. Reconhece, nesses rabiscos e rasuras, uma das formas de amar os livros. São evidências dos tempos de vida de sua mãe, encontro possível pelos livros que ela leu. 


Caroline Craveiro

Para baixar e ler o ensaio “Minha mãe vive aqui”, de Isabel Zapata acesse o site

 

*Este projeto foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.