20ª Coluna Literária - Biblioteca Diversa
Foto: Arte/FMCBH

20ª Coluna Literária - Biblioteca Diversa

Apresentação

A 20ª edição da Coluna Literária nos convida a pensar os vários olhares e fazeres que abrangem as questões de gênero e sexualidade —  seja na perspectiva das autorias, das relações vida e obra, seja das temáticas dessas narrativas literárias. Traz as resenhas de “Escafandrista”, do escritor independente Louraidan Larsen, e “Encantaria: contos afrolésbicos”, da escritora Jhô Ambrósia, publicado pela editora Malê. E, ainda, o perfil literário de Cassandra Rios – “a autora mais proibida do Brasil”.

Em diversas ocasiões, a história da humanidade é marcada pela queima de livros e documentos. Tais atos demonstram o quão poderoso é o conhecimento registrado e quão virulenta pode ser a reação a pensamentos divergentes. Mas a censura é multifacetada: silencia vozes, esconde corpos, coíbe a dissonância de pensamento, reforça centralidades, mas pode se travestir. A censura direta é óbvia e obtusa, como chamas queimando, o que páginas facilmente revelam. Mas há formas mais insidiosas. É nesse campo minado que caminhamos hoje, provocados pela eclosão de movimentos e pensamentos contra hegemônicos. As bibliotecas são lugares de memória e guarda do conhecimento, mas também de conflitos e tensões produtivas. Estes são fundamentais para que esta importante instituição possa se afirmar como espaço materialmente democrático. Caso contrário, também poderá silenciar vozes e excluir novos modos de compreender o mundo.

O mundo se transforma a todo momento. Este dinamismo demanda que os conceitos sejam repensados e reelaborados, e que ofertemos acervos plurais, cuja ampliação das referências éticas, estéticas e culturais de leitoras e leitores seja garantida. Que a leitura de um livro nos inquiete! É sobre isso.

Daniela Figueiredo e Érica Lima

Resenha - Escafandrista - Louraidan Larsen

Escafandrista - Louraidan LarsenO que acontece quando você sai de casa, está na rua, no ponto de ônibus ou mesmo em lugares públicos como supermercados, bares, lanchonetes ou praças? O livro “Escafandrista”, do mineiro Louraidan Larsen, traz para a literatura a literalidade da vida, mostrando que o literal pode ser, também, literário. Prefaciado por Laerte Coutinho, uma das maiores cartunistas do país, vem com um humor sempre refinado, além de um jogo de imagens e palavras que atribuem sentidos ao que se pode encontrar nas páginas dessa obra: desvela as histórias orais e as subjetividades do cotidiano das pessoas comuns.

A singularidade do texto está exatamente na explicitação da vida comum, sobremaneira de personagens cujos grupos são minoritariamente descritos na literatura e socialmente invisibilizados, com destaque para o encontro narrativo com crianças, uma amiga cega, com pessoas lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, queers, intersexo e assexuais e outras denominações (LGBTQIA+), população de rua, mulheres, pobres e negros nos mais diversos contextos. Muitas dessas narrativas presentes nos microcontos abordam a sabedoria do cotidiano, também refletindo a visão do autor ao se debruçar em temáticas contemporâneas, como a questão de gênero, das desigualdades sociais e econômicas, o racismo, a homofobia, o machismo e a infância nas cidades.

Louraidan traz em seus textos a casualidade do cotidiano para as interações sociais presentes, permeadas pela leveza. Demonstra em histórias singelas que há beleza no cotidiano. O autor naturaliza as relações e as existências, sem necessariamente assumir uma postura panfletária: lida circunstancialmente de modo simples com pessoas, independentemente de sua orientação ou identidade. A sutileza da narrativa permite ao leitor que muitas vezes preencha mentalmente os silêncios não descritos em letras, oportunizando a completeza das histórias com liberdade de um diretor cinematográfico, num exercício criativo possível e aprazível.

O livro trata necessariamente dos encontros entre pessoas: seus aspectos sentimentais, relacionais, de maneira indistinta. As narrativas se passam nos ambientes mais comuns da vivência urbana: ora dentro de um ônibus, ora em supermercados, ora na famigerada Biblioteca da cidade, ou na rua mesmo. As histórias reverberam a diversidade de vozes existentes e muitas vezes silenciadas nas cidades. As pessoas presentes nas páginas de Louraidan sentem, necessitam, sofrem, amam. Encontros nos mais diversificados lugares, relatos do cotidiano.

As frases simples e o texto fluido nos convidam à leitura por cada um dos micro contextos ali muito bem retratados. A riqueza da obra literária está nas reflexões do autor e na explicitação de suas visões de mundo, assim como nas inquietações sobre as temáticas apresentadas nas situações retratadas. O livro foi realizado com recursos da Lei Municipal de Incentivo à Cultura.

Alisson Barbosa
Bibliotecário - Centro Cultural Vila Marçola

Resenha - Encantaria: contos afrolésbicos - Jhô Ambrósia

Encantaria - Jhô Ambrósia“Encantaria: contos afrolésbicos”, de Jhô Ambrósia, ed. Malê, nos insere no universo de amores, paixões, prazeres, e, também, desencontros. É uma leitura descomplicada, cujo cotidiano de casais –  ora de mulheres, outrora de mulheres e homens – é descortinado. O fio condutor da narrativa, como o título já sugere, é o relacionamento lésbico entre mulheres negras, com vidas guiadas pela religiosidade afrodescendente. É ambivalente, pois, ainda que seja descomplicado, toca em temas importantes como: feminismo, racismo religioso, patriarcado, colonialismo, assédio sexual e estupro.

Tem uma perspectiva decolonial, à medida em que apresenta mulheres negras bem-sucedidas profissionalmente – ativistas, intelectuais, empresárias, pesquisadoras, professoras –  com nome e sobrenome: Líria, Fayola, Amara, Tiana, Teca, Makota, Marília e muitas outras. Para mim, o clímax dos contos é a emancipação das mulheres no sentido de experimentar – a qualquer tempo – novas sexualidades, diferentes daquelas impostas pelo patriarcado. São histórias de mulheres lésbicas, que redescobrem seus corpos e diferentes formas de prazer, reposicionando-se afirmativamente no mundo.

A leveza também está no humor presente em alguns contos, como em “A revolta das calcinhas”. Nos anos oitenta, tempo de saias longas, tudo coberto:  “[...] Enojuani foi a missas, enterros, aulas e congressos com a xereca tomando ar” (p.39). O livro é, sobretudo, uma oportunidade de fruir uma narrativa que extrapola os relacionamentos forjados pela heteronormatividade. A obra, publicada em 2021, já está disponível na rede de bibliotecas da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte para empréstimo. 

Daniela Figueiredo
 Gerência de Bibliotecas Promoção da Leitura e da Escrita

Perfil Literário - Cassandra Rios: protagonismo e censura no Brasil 

Perfil Literário - Cassandra RiosNão é sem excesso que escrevo este perfil literário. É com excesso de interesse, de compromisso, de alegria. Mas quem diz o que é excesso? Quem legisla? Quem censura? Nasci em 1974, quando se inicia o processo de abertura, no Brasil, depois de mais de 20 anos de ditadura militar. Em 1988, esse processo alcança seu fim, com a promulgação da Constituição Federal. Ou melhor, alcança um marco muito importante, mas que não nos libera do compromisso de seguir atentes e militantes. 

A persona literária que trazemos nessa edição da Coluna Literária é no mínimo instigante. Mas é muito mais. É a primeira escritora brasileira a alcançar 1 milhão de exemplares vendidos. É a mais perseguida e censurada na ditadura militar: recordista em depoimentos no DOPS (Departamento de Ordem Política e Social) e recordista em vetos durante o regime militar – 36 de seus 50 livros foram censurados. É a “escritora maldita”, mas que foi uma das poucas, à sua época, que sobreviveram exclusivamente de sua escrita.

Cassandra Rios, pseudônimo de Odette Pérez Ríos (paulistana, nascida em 1932), ousou apresentar sujeitos socialmente marginalizados, exatamente no momento mais “marginalizante” do Brasil, no século XX. Sujeitos marginalizados por uma não conformação aos padrões heteronormativos de comportamento. Existências negadas, abominadas, reprimidas, assassinadas. Cassandra Rios denunciou a violência a que esses sujeitos são submetidos, ao mesmo tempo que deu visibilidade a esses mesmos sujeitos LGBTQIAP+ (termo que não existia em sua época) e desconstruiu um sentido hegemônico de mulher.

Hoje, Cassandra Rios recebe atenção da academia. Mas não logrou fazer isso à sua época. Foi considerada subliterata, não só pela censura, mas também pelos intelectuais. Foi, realmente, best seller. Hoje, insistimos, recebe leituras em camadas diversas, inclusive políticas. Interessante o quanto sua obra se vale ou se relaciona com sua própria biografia. Nesse sentido, o caráter instigante só aumenta. Mas, voltando a um aspecto que julgamos relevante ressaltar: a vida pessoal de Odette e a vida literária de Cassandra testemunham sobre o histórico descrédito da escrita feminina e sobre o olhar implacável frente a sexualidades dissidentes. Os desafios que enfrentou como mulher escritora e os ataques à sua obra resultam de uma ordem patriarcal heteronormativa excludente e violenta. Além de atestar uma ignorância absoluta sobre a condição humana e sobre a função e potência da Literatura. A censura a sua obra e a sua biografia é a negação mesma de qualquer inteligência como capacidade de conhecer, compreender e aprender.

O cânone literário nunca foi gentil com as mulheres. Que dirá com relação a mulheres que abordam temas “restritos” aos homens, como o erotismo, por exemplo. Que dirá com relação a mulheres que têm sua própria editora, como Odette/Cassandra teve. O ataque é tão virulento, foi tão virulento, que levou Odette/Cassandra à falência. Sob pseudônimos masculinos, como Oliver Rivers ou Clarence Rivier, Odette/Cassandra não sofreu a mesma perseguição. Flagrante a misoginia e o machismo aplicados a sua obra. 

Se hoje lemos, no Brasil, Natália Borges Polesso, Cidinha da Silva, Jhô Ambrósia, para citar poucas, devemos, em grande medida, a Cassandra Rios e a Odette Pérez Ríos, que desbravaram caminhos, ainda hoje, de difícil acesso.

Érica Lima
Técnica de Literatura - Centro Cultural Salgado Filho


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